Layout do blog

A “(in)justiça” feita com as próprias mãos.

Cláudia Chaves Martins Jorge • nov. 21, 2020

Por Cláudia Chaves Martins Jorge


A justiça sempre esteve presente na história da civilização. Desde a pré-história, para que pudessem garantir a sobrevivência, as pessoas tiveram que aprender a cooperar entre si, e perceberam que juntas, eram capazes de vencer as adversidades da natureza. Porém, ao começarem a conviver em “sociedade”, mesmo que primitiva, também passaram a lidar com conflitos, surgindo daí a necessidade de estabelecerem regras que fossem aceitas e cumpridas por todos¹.


Desde a narrativa da criação na Bíblia, o ser humano sempre foi submetido a regras. Segundo o livro de Gênesis, quando Deus criou o homem, o colocou no paraíso, onde não tinha dificuldades para sobrevier e tudo o que precisava estava ao alcance. Em contrapartida, foi estabelecida uma regra a cumprir – não comer o fruto de determinada árvore – e pela desobediência, o homem e a mulher, como sanção (penalidade) receberam a expulsão do paraíso e passara a ter uma série de dificuldades advindas dessa desobediência².


Nas palavras do Professor Paulo Nader³, “a necessidade de paz, ordem e bem comum levam a sociedade à criação de um organismo responsável pela instrumentalização e regência desses valores”. Ou seja, o Direito, através das normas, estabelece o que é permito fazer, e impõe sanções àquilo que viola e fere a convivência entre as pessoas. E o autor ainda complementa: “o homem que vive fora da sociedade vive fora do império das leis, o homem que vive isolado, completamente sozinho, não possui direitos nem deveres, pois não viola regras.” Mas o ser humano é essencialmente social estando, portanto, sujeito às leis de convivência e seus ditames.


É importante ressaltar que o Direito não é o único responsável por impor regras ou normas, mas também, a moral, a ética e a religião igualmente zelam por princípios e valores daquilo que deve ou não ser praticado na vida em sociedade. No entanto, ao Direito cabe a aplicação de sanções (penalidades) em caso de violação das normas. As demais (moral, ética e a religião) trabalham com a conscientização para melhorar as pessoas enquanto pessoas, mas não podem impor penalidades (ex.: prisão, detenção ou multa) a quem as violar.


Porém, se alguém sofre alguma injustiça, deverá procurar um advogado de sua confiança ou a defensoria pública para o ajuizamento de uma ação judicial, onde, através da apresentação de todas as provas que possui, pleitear o direito que lhe assiste. Não estamos mais sob a vigência da Lei das Doze Tábuas4aplicando o “olho por olho” e “dente por dente”, quem é competente para fazer valer a lei é o juiz, caso seja necessário o ajuizamento de uma ação. 


No entanto, ainda se vê pessoas fazendo “justiça” com as próprias mãos. De acordo com informações do pesquisador José de Souza Martins5, até fevereiro de 2020, mais de 1 milhão de brasileiros afirmaram já ter participado de algum linchamento. E as motivações são variadas, desde crimes de roubo ou furto, até acusações de sequestro ou estupro. Cabe ainda chamar a atenção para o tradicional “pega ladrão” que comumente é ouvido pelas ruas dos grandes centros, e se aquele flagrado roubando ou furtando for alcançado, ele merece levar um “corretivo” para aprender. De acordo com os dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP6 (NEV-USP), os casos de linchamento não são aleatórios e atingem principalmente os mais pobres.


Tudo tem limites, até para aqueles que defendem seu direito. Imaginem uma pessoa ouvindo música em sua casa, até aí, nenhum problema, mas se ele não simpatiza com o vizinho (que está trabalhando em home office, gravando aulas por exemplo) e ele resolva aumentar o som de forma ensurdecedora, apesar do direito que tem de ouvir música em sua casa, acabou cometendo ato ilícito, por exceder manifestamente o direito que lhe assiste. De acordo com o Código Civil:

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”


Agora imaginem a situação de uma senhora que tem sua bolsa roubada, o ladrão para tirar dela a bolsa, a derruba no chão e a ela se machuca. Com desespero ela grita a famosa frase “pega ladrão”, se quem estiver por ali conseguir alcançá-lo, pegar de volta a bolsa, mas não satisfeito com isso começar a bater no ladrão de forma a deixá-lo inconsciente no chão (se não ocorrer coisa pior), apesar da boa ação de devolver a bolsa à senhora, cometeu um crime (Lesão corporal), previsto no Código Penal no art. 129.


Isto sem falar nos casos de agressões cometidas contra inocentes, pessoas que foram confundidas com outras, como o ocorrido em 2014 quando uma mulher de 33 anos de idade, ao dar uma fruta a uma criança de rua, foi confundida com uma sequestradora, por conta de uma “Fake News” intitulada “Guarujá alerta” no Facebook7. A mulher chegou a ser agredida e morta depois de sofrer vários golpes na cabeça.


O documentário “A primeira pedra” do cineasta Vladimir Pereira Seixas8 apresenta relatos de pessoas que praticaram atos de linchamento justificado no ódio por alguém ou por uma situação, como se o bater e o matar, fosse a solução dos problemas. E de repente, pessoas que nem sabem o porquê do ato de violência, se veem ali, em meio à multidão, praticando o mesmo ato, motivados por uma raiva interna sabe-se lá de que.


Casos absurdos de linchamento e violência são vistos reiteradamente nos noticiários. O último que ganhou espaço no noticiário foi do João Alberto Silveira Freitas, morto por espancamento pelos seguranças do supermercado Carrefour, exatamente na data em que se comemora o dia da Consciência Negra (20/11/2020). Ainda não se sabe ao certo o que aconteceu dentro do supermercado, mas o que se sabe é que os seguranças excederam os limites da razoabilidade e praticaram um ato de barbárie, espancando-o até morte. E o mais absurdo é que os atos de violência e linchamento são filmados por pessoas que assistem aquilo como se não fosse um ser humano que estivesse sendo violentamente atacado. E divulgam as imagens pelas redes sociais, como um troféu para dizer que alguém que fez ou não alguma coisa, foi punido de acordo com o entendimento daqueles que presenciaram o ato, o julgaram, condenaram e aplicaram a pena.


Tão cruel quanto às agressões físicas, o linchamento virtual tem ganhado espaço através das redes sociais, onde a vítima recebe ataques verbais tão ofensivos, que às vezes as impedem de sair de casa e ter qualquer tipo de relação social, afetiva ou profissional. Apesar de apagarem suas contas nas redes sociais, as consequências na vida das vítimas e de suas famílias são profundas, e, por não conseguirem lidar com a situação, acabam deprimidas e com graves problemas psicológicos. 


Fazer justiça com as próprias mãos é crime previsto no Código Penal no artigo 345 (exercício arbitrário das próprias razões), mas este ato costuma ter consequências graves que podem variar da Lesão Corporal leve, grave ou gravíssima, até chegar ao extremo do homicídio. O sociólogo José de Souza Martins, autor do livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil”9, estima que no Brasil ocorra, pelo menos, uma tentativa de linchamento por dia. E o autor destaca ainda em sua obra, que este tipo de agressão é vista como um ritual punitivo e vingatista dos chamados “justiceiros”.


Presenciar um ato de violência desta magnitude em pleno século XXI, faz-nos questionar se a humanidade de fato evoluiu. De nada adianta as instituições, governamentais ou não, pedirem desculpas às famílias da vítimas através de notas, com a promessa de que os fatos serão investigados e os agressores punidos, porque até a nota de desculpas se remeta à vingança. Ao invés de se colocar armas na mão do povo, para que a violência não seja ainda maior, que se coloque livros, que se dê uma educação de qualidade e escolas públicas bem estruturadas, capazes de oferecer o melhor aos alunos; que se valorize os professores e os educadores, porque, só através da educação e da informação é possível evitar que a violência chegue a patamares ainda maiores.


Referências:


¹PISSARRA, Maria Constança Peres; FABBRINI, Ricardo Nascimento (Org.).Direito e Filosofia: a noção de justiça na história da Filosofia. São Paulo: Atlas,2007.

²https://biblia.paulus.com.br/

³NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004

4http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=tabuas#:~:text=A%20Lei%20das%20Doze%20T%C3%A1buas,escritas%20e%20regras%20de%20conduta).

5MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

6https://nev.prp.usp.br/dados/linchamentos/

7https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-05/Dono%20de%20Facebook%20ajudar%C3%A1%20na%20investiga%C3%A7%C3%A3o%20do%20caso%20de%20mulher%20morta%20ap%C3%B3s%20boato

8https://www.youtube.com/watch?v=yJVogwj6p70&feature=emb_title

9MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015

Por Sidney Jorge 08 mai., 2024
Lembrei do encontro com uma pessoa a exalar toda iluminação vinda de suas experiências e moções internas. Era certo que poderia destinar-lhe algumas inquietações.
Por Sidney Jorge 24 abr., 2024
Hoje é dia de festa, Com presença de emoção. Todo evento atesta, O amor e a gratidão!
Por Sidney Jorge 09 jan., 2024
Algo que aprendemos na vida é a força das referências nas atualizações das realidades. Varia para cada pessoa, entretanto, podem construir novas percepções de acordo com quem encontramos pelo caminho e, as crenças que trazemos ao presente.
Por Sidney Jorge 06 dez., 2023
O que é a vida senão viver. Estar aí diante infinitas possibilidades de, principalmente, estar feliz. Alcançar a integridade do Ser é missão para evolução da consciência durante um período histórico que pode estar além do imediatismo da sociedade...
Por Sidney Jorge 08 nov., 2023
“Todo mundo é um gênio. Mas se você julgar um peixe por sua capacidade de subir em uma árvore, ele gastará toda a vida acreditando ser estúpido. ” Atribuída a Einstein.
Por Sidney Jorge 04 out., 2023
Um Nível de consciência sublime. Com frequência vibracional de 500Hz. Quem não gostaria de estar permanentemente vibrando no amor.
Por Sidney Jorge 20 set., 2023
E se vai dar tudo certo? E se receberei tudo que tenho a receber hoje? E se eu tirar a maior nota da prova?
Por Cláudia Chaves Martins Jorge 19 set., 2023
Quando uma pessoa falece e tem patrimônio, esses bens são transmitidos, por herança, aos herdeiros, mas, para que assumam legalmente a propriedade, é necessário dar entrada no processo de inventário...
Por Sidney Jorge 07 set., 2023
Na casa de minha avó, não havia panela de pressão. Em uma panela de ferro, aos poucos se cozinhava,
Por Sidney Jorge 07 set., 2023
A pessoa chegou até mim Dizendo que a vida era treta. De pronto orientei assim:
Mais Posts
Share by: